Projeto da desoneração autoriza governo a resgatar até R$ 8,5 bi esquecidos em contas bancárias
A medida foi incluída como uma das fontes de compensação para a perda de receitas com a prorrogação do incentivo fiscal a empresas de 17 setores e municípios.
O parecer do relator, senador Jaques Wagner (PT), líder do governo no Senado, não detalha o potencial de arrecadação com a iniciativa, mas o SVR (Sistema de Valores a Receber), do Banco Central, indica a existência de R$ 8,5 bilhões esquecidos. Os bancos lideram o volume de dinheiro esquecido, seguidos por administradoras de consórcios, cooperativas, instituições de pagamento, financeiras e corretoras.
Se o governo conseguir reaver todo esse montante, já terá garantido quase R$ 20 bilhões em receitas adicionais para fechar o ano dentro da meta fiscal, que é de déficit zero.
O texto também agiliza a transferência de depósitos judiciais retidos de forma indevida pela Caixa Econômica Federal. Dos R$ 14,2 bilhões inicialmente mapeados, a instituição repassou R$ 6,8 bilhões ao Tesouro —ou seja, ainda restam R$ 7,4 bilhões.
O projeto determina ainda o repasse de valores abandonados em contas judiciais. Só a Justiça do Trabalho já identificou pelo menos R$ 3,9 bilhões aptos a serem repassados aos cofres da União, mas o potencial real da medida pode ser ainda maior.
Integrantes do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) têm evitado, nos bastidores, cravar um valor esperado para a arrecadação com essas ações. A avaliação é que os ganhos podem superar os R$ 20 bilhões, mas há que se ter cautela diante da dificuldade em obter informações precisas —no caso dos depósitos judiciais, há ações tão antigas que ainda estão em versão de papel.
Ao mesmo tempo, a inclusão das iniciativas no projeto da desoneração tem alimentado maior otimismo da equipe econômica para a reta final do ano, pois significa um reforço importante de receitas com o qual não se contava até então.
Entre economistas, a percepção é que o ingresso desses recursos vai ajudar o governo, mas não significa melhora na trajetória fiscal, pois são receitas extraordinárias que não se repetirão no futuro.
Técnicos do próprio governo reconhecem que será preciso encontrar novas fontes de arrecadação para fechar um buraco calculado em aproximadamente R$ 30 bilhões no Orçamento de 2025.
Além disso, há uma discussão técnica sobre a contabilização desses recursos como receitas primárias no cálculo do resultado fiscal do governo.
A apropriação de recursos privados pelo Tesouro Nacional costuma ser classificada como ajuste patrimonial pelo Banco Central, órgão responsável pelas estatísticas oficiais das finanças públicas brasileiras.
O ajuste patrimonial não representa um esforço fiscal ou uma medida estrutural. Por isso, esse tipo de operação reduz o endividamento do governo, mas não entra no cálculo do resultado do exercício —que indica se o governo cumpriu ou não a meta fiscal.
Esse inclusive foi o entendimento do BC quando o governo incorporou R$ 26 bilhões parados no Fundo PIS/Pasep. O Tesouro reconheceu o valor como receita primária, mas o BC não, o que levou à maior discrepância estatística da história entre os dois resultados.
Integrantes do governo afirmam, sob reserva, que os valores deveriam ser contabilizados no resultado primário, mas o tema ainda será discutido com o Banco Central.
No texto do projeto, porém, já há uma tentativa de pacificar a questão. Um dos dispositivos prevê que os valores levantados das contas bancárias “serão apropriados pelo Tesouro Nacional como receita orçamentária primária para todos os fins das estatísticas fiscais e da apuração do resultado primário”, com uma referência direta ao artigo do arcabouço fiscal que delega ao BC o cálculo oficial dos números.
Procurado pela reportagem, o BC não respondeu até a publicação deste texto.
O economista-chefe da Warren Rena, Felipe Salto, avalia que todo o esforço para incrementar as receitas é bem-vindo.
“O fundamental, no curto prazo, é entregar a meta. Isso gerará credibilidade, vai fazer preço e é fundamental. Claro que não anula a necessidade de reforçar o compromisso para frente e, neste caso, será preciso mais do que os depósitos judiciais”, diz.
Já o economista Jeferson Bittencourt, head de macroeconomia do ASA e ex-secretário do Tesouro Nacional, afirma que o resgate desses depósitos mostra por parte do governo uma “estratégia de tentar fechar a conta a qualquer custo”, o que vai contra os preceitos do próprio arcabouço fiscal.
“O que o governo está fazendo é evitar os mecanismos de ajuste automático [das despesas, em caso de estouro da meta fiscal] com receitas não recorrentes”, diz.
Um dos gatilhos de ajuste do arcabouço, se acionado, poderia tirar até R$ 16 bilhões de Lula em 2026, ano de eleições presidenciais. Na avaliação de Bittencourt, escapar do acionamento com receitas de depósitos significa contratar despesas sem ter receitas recorrentes para bancá-las.
O ex-secretário do Tesouro diz ainda que, em situações semelhantes no passado, houve o entendimento de que a apropriação de recursos privados depositados em contas judiciais poderia significar um “confisco”.
O STF (Supremo Tribunal Federal) já declarou a inconstitucionalidade de uma medida de 2017 que autorizou o cancelamento de precatórios não sacados em até dois anos.
Mesmo que agora haja fundamentação legal para as mudanças, Bittencourt afirma que não é recomendável “forçar o entendimento” do Banco Central de que os recursos devem entrar na conta de resultado primário. Ele faz uma observação técnica de que a metodologia do BC nem sequer apura as receitas primárias —a instituição faz o cálculo a partir da variação da dívida líquida.
“Não é demérito trazer isso [recursos] para o caixa e ajudar na gestão da dívida. O que não deve ser feito é forçar o entendimento de que isso é resultado primário. Independentemente da estatística, de fato não é uma receita permanente que vai sustentar o equilíbrio das contas públicas”, afirma.
Bittencourt diz também que a sinalização do STF de aceitar quaisquer medidas de compensação para a desoneração da folha acaba fragilizando a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), que estabelece ações específicas para o ajuste: elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo ou criação ou majoração de tributos.
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