Maioria absoluta de incêndios que atingem o Brasil tem origem humana, dizem cientistas
O diagnóstico, na opinião de mais de dez especialistas ouvidos pela Folha —entre técnicos do governo, da sociedade civil e acadêmicos—, é unânime: a contribuição da natureza, como em raios, para o alastramento dos incêndios é irrelevante.
Assim, a maioria absoluta desses incêndios que atingem o país tem origem humana, ainda que não haja dados precisos sobre as causas em todos os estados.
Não há pesquisas que concluam um percentual exato de queimadas originadas por causas naturais em todo o Brasil —apenas regionais, segundo os estudiosos ouvidos pela reportagem.
A literatura científica indica, dizem, algo em torno de 1% durante a seca, quando a quantidade de descargas elétricas diminui, uma vez que há pouca chuva, e não mais que 5% quando considerado o ano todo.
Entre as causas naturais de incêndios registrados no país, os raios são os principais meios de ignição —não há vulcões por aqui e são raros os relatos de queimas que começam com a fricção de rochas em deslizamentos ou refração do sol em cristais, por exemplo.
Além disso, a chance de raios produzirem fogo é menor em locais de clima tropical, como o Brasil. Se isso ocorre, a queimada costuma ser pequena, diferentemente do Canadá ou do norte da Europa.
Por isso, eles concluem que não há indícios de que causas naturais tenham peso significativo para a atual crise de incêndios no Brasil.
Segundo Renata Libonati, coordenadora do Lasa, o laboratório espacial da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), isso fica demonstrado uma vez que o pico de incêndios no Brasil não coincide com a alta temporada de raios.
O país registrou 200.013 focos de calor até 22 de setembro de 2024, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). A maioria (91,4%, ou 183 mil), do mês de maio em diante.
Os raios fazem o movimento inverso: 82,2 milhões de descargas elétricas atingiram o solo em 2024, só 22% a partir do quinto mês do ano (18 milhões).
Osmar Pinto Junior, coordenador do Elat (grupo de eletricidade atmosférica, que monitora os raios no Inpe), explica que esse número de raios desde maio é muito baixo comparado à alta temporada. A quantidade deles que produz fogo é também pequena —o instituto ainda trabalha para aferir o percentual com maior precisão.
“Os raios podem ser descartados como fonte significativa para a quantidade de incêndios que estão acontecendo. Embora o número de descargas possa parecer grande, a contribuição para o número de queimadas não é significativa”, diz.
Quando uma descarga elétrica atinge uma árvore, explica, ela desce direto pelo tronco até as raízes na maioria dos casos. A planta morre de baixo para cima. Se há produção de alguma chama, ela é fraca.
“Há raios mesmo durante a seca e vai haver fogo produzido por eles, mas não dá nem para falar em incêndios. É algo concentrado em uma ou cinco árvores, e muitas nem pegam fogo”, explica.
Um estudo publicado pelo Lasa sobre incêndios no pantanal cruzou dados de focos de calor com incidência de raios. A conclusão, a partir de modelos matemáticos, é de que apenas 1% das descargas elétricas causa incêndios.
O laboratório utilizou a mesma metodologia em uma nota técnica sobre as queimadas no bioma neste ano. “Observa-se que nos meses de março, maio, junho e julho nenhum foco de calor foi originado a partir de raios e, entre os demais meses, a quantidade estimada é muito pequena em relação ao total de focos detectados”, diz o documento.
“Estas estimativas fortalecem a hipótese de que os incêndios que vêm ocorrendo desde o início de 2024 são, em sua grande maioria, de origem humana e não natural.”
O levantamento registrou 36,3 mil focos de calor no pantanal de janeiro a julho, apenas 80 por causas naturais, ou seja, 0,002%.
No mesmo período, segundo o Elat, caíram 10,6 milhões de raios em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
A diretora do MapBiomas Fogo, Ane Alencar, também avalia que queimadas por raios, fricção de rocha ou refração de luz são eventos incomuns no país, assim como focos iniciados por garrafas de vidro ou latas de metal deixadas sob o sol, na mata seca, por descuido humano.
“O quão multiplicável é isso para gerar o que a gente está vendo? Seria muito improvável que acontecesse em vários lugares ao mesmo tempo”, diz.
O diretor de conservação e uso sustentável do Ministério do Meio Ambiente, Bráulio Ferreira de Souza Dias, reforça que as condições para uma ignição são difíceis de encontrar na natureza.
“Se você quer fazer queima para renovar pastagem, a legislação e a boa prática mandam não fazer isso na seca, com calor e vento. Tem que ser antes e com uma brigada ao lado, caso o fogo escape do controle. Mas tem gente que é displicente”, afirma ele, que também é professor de ecologia na UnB (Universidade de Brasília).
Segundo Renata Libonati e Osmar Pinto Junior, incêndios quilométricos e de crescimento rápido, como os registrados neste ano, indicam conhecimento da dinâmica do fogo em sua autoria.
“O padrão do fogo originado por raio é diferente do por ação humana, principalmente sua extensão e sua intensidade. Os focos naturais são em geral pequenos e de pouca intensidade”, diz Libonati.
“Igual churrasco: é difícil fazer o fogo pegar no carvão, mais ainda fazer ele se alastrar”, exemplifica Junior.
Ambos alertam que o país entrará, no fim de setembro, na transição para o tempo chuvoso, quando a incidência de raios cresce e a vegetação ainda está seca.
“Esse número de raios vai aumentar em cinco vezes, a quantidade de incêndios produzido por raios pode subir para 5% ou até 10%, dependendo do local”, projeta Junior.
A reportagem também procurou a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) para comentar os incêndios. A entidade ligada ao agronegócio preferiu não comentar.
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