Sem Lula, Brasil vai ao Brics de Putin sob desconfiança do Ocidente e cético sobre expansão do bloco
Como membro fundador, o País tem direito a veto. Deve exercê-lo no caso de Daniel Ortega e avalia também bloquear – ou ainda se abster – sobre a almejada entrada de Nicolás Maduro. A reunião será usada pelo presidente russo, Vladimir Putin, como parte de uma estratégia para demonstrar força e contestar seu isolamento global.
Por recomendação médica, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva cancelou de última hora a viagem até Kazan, na Rússia, após sofrer um trauma e um corte na cabeça em uma queda no Palácio da Alvorada. A ausência forçada do petista pode acabar por evitar embaraços públicos ao presidente e reduziu a expectativa – até no Palácio do Planalto – por um viés negativo na repercussão do Brics, já que o governo teve de desmarcar reuniões bilaterais paralelas à cúpula, a principal delas com o próprio Putin.
Temor de retaliações ocidentais
Dentro do governo brasileiro, há receios de que gestos de aproximação ou lidos favoráveis aos russos – mesmo na relação bilateral e na esfera do comércio – possam melindrar americanos e europeus, e levar a retaliações políticas ou econômicas, como um aprofundamento da indisposição para fechar logo o acordo entre Mercosul e União Europeia.
A reunião entre Lula e Putin seria a primeira cara a cara entre os dois no terceiro mandato do petista. O momento era aguardado nos meios diplomáticos porque poderia gerar declarações de ambos a respeito da proposta sino-brasileira de acordo entre as partes na guerra da Ucrânia, já elogiada pelo russo Putin e criticada pelo presidente ucraniano, Volodmir Zelenski.
Altos funcionários de governos europeus, ouvidos sob condição de anonimato, veem a participação do Brasil no Brics como expressão do histórico não alinhamento da política externa brasileira, forma de buscar autoridade para representar o Sul Global, e condizente com a estratégia de explorar conexões em diversas frentes ao mesmo tempo, além de chamar a atenção dos EUA, para arrancar vantagens da relação tanto com Washington quanto com Pequim.
O possível ingresso de companhias “incômodas”, dizem esses diplomatas, pode gerar repercussões políticas a Lula inclusive em âmbito doméstico, sobretudo, com eventual adesão de ditadores latino-americanos.
Para os ucranianos, Putin certamente exploraria a visita de Lula, carregada de simbolismo, para tentar demonstrar aparente normalidade – apesar da guerra em andamento – por meio de uma foto com aperto de mãos ou abraço entre eles. Desde a invasão em fevereiro de 2022, ele isolou-se de fóruns multilaterais e vem sendo evitado na arena exterior – não recebeu visita de nenhum líder democrático ocidental.
O governo ucraniano monitorava a viagem de Lula e estava incomodado com o fato de o Palácio do Planalto ter ignorado o pedido para que Lula visitasse Kiev e ouvisse as demandas de Zelenski dias antes do encontro com Putin. A reunião apenas com o líder russo em Kazan aprofundaria a falta de confiança entre os governos do Brasil e da Ucrânia, relatou um funcionário de Kiev, sob anonimato, e fragilizaria a alegada “neutralidade” de Lula.
Eles chegaram a propor que o petista, logo depois, promovesse um encontro de ambos no Brasil, durante a cúpula do G-20, em novembro no Rio de Janeiro. Putin não participará do G-20 para evitar constrangimentos e por causa de uma ameaça de prisão expedida pelo Tribunal Penal Internacional.
Ampliação indigesta
O chanceler Mauro Vieira assumiu a liderança da delegação brasileira. Ele chegou a Kazan nesta segunda-feira, dia 21, para representar Lula e os interesses do País nas discussões do bloco, e adiantou que a guerra entre Rússia e Ucrânia não é pauta do Brics. O tema central em Kazan será a negociação para ampliar o grupo, hoje formado por países heterogêneos, sob influência majoritária da China, e com mais ditaduras do que democracias.
A cúpula de Kazan vai decidir a forma e o conteúdo da segunda expansão seguida do grupo, também incentivada por Rússia e China. A do ano passado levou mais de uma década para ocorrer. Agora, em ritmo acelerado, a negociação avançou para a criação de uma categoria especial de países “parceiros”. Devem ingressar nessa condição outros dez países – de uma lista que chegou a 34 pedidos de adesão.
O Estadão teve acesso à lista de candidatos sobre a mesa. Constam os seguintes países: Argélia, Azerbaijão, Bahrein, Bangladesh, Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Chade, República do Congo, Guiné Equatorial, Eritreia, Honduras, Indonésia, Kuwait, Laos, Malásia, Mianmar, Marrocos, Nicarágua, Nigéria, Palestina, Paquistão, Senegal, Sri Lanka, Sudão do Sul, Síria, Tailândia, Turquia, Uganda, Venezuela, Vietnã e Zimbábue.
O Brasil apoiou o ingresso de outros países, como Colômbia e Angola, mas eles não constam da lista de quem manifestou o interesse em adesão agora. A expectativa do Itamaraty é que ao menos dez novos membros sejam de fato aprovados como “parceiros”. Todos dependem de aprovação por consenso dos atuais membros – na prática, isso confere o poder de veto.
A expectativa é que, dos países latino-americanos, o Brasil barre explicitamente o ingresso da Nicarágua, por causa da recente expulsão do embaixador brasileiro de Manágua, pelo ditador Daniel Ortega. Integrantes do Planalto lembram que houve quase um rompimento total de Ortega com o governo Lula. Cuba, Bolívia e Honduras completam a lista da região.
No caso da Venezuela, há um impasse no governo sobre como lidar com Caracas. A relação de Lula se deteriorou com o ditador Nicolás Maduro, e o governo brasileiro se nega a reconhecer sua alegada reeleição, diante dos indícios de fraude. A entrada não seria positiva para o governo Lula. Celso Amorim não é contra e manifestou que o bloco deve se manter influente com países expressivos.
Porém, integrantes do Planalto ponderam que vetar a Venezuela poderia piorar a crise política vizinha que o Brasil tenta mediar. Por isso, ainda avaliava-se a possibilidade de o Brasil se abster, o que na prática liberaria a entrada do país – um desejo de russos e chineses.
Questionado especificamente sobre a Venezuela, Mauro Vieira disse ao chegar a Kazan que “todos os países candidatos têm chance” de serem aceitos como associados.
No entanto, nos bastidores, há favoritos como a Turquia – por causa da relevância geopolítica – e outros com problemas no caminho, a exemplo do Paquistão.
Apesar do apoio de russos e chineses, o governo de Islamabad sofre objeção da Índia, por causa das rivalidades históricas e do conflito entre ambos pelo controle da Caxemira. Os paquistaneses acham que conseguiram ajuda de Moscou e Pequim para convencer Nova Délhi a desbloquear sua adesão ao Brics. Eles alegam que já compartilham com os indianos fóruns multilaterais menores como a Organização para Cooperação de Xangai e a Associação Sul-Asiática para a Cooperação Regional. A Índia já vetou o engajamento do vizinho no Brics antes.
A diplomacia brasileira joga contra o tempo, procura desacelerar o ritmo e tenta emplacar a tese de que os novos associados sejam escolhidos segundo certos critérios, diante do apetite por expansão de Rússia e China. O receio é que tentem atropelar em cima da hora. Entre os fatores a serem avaliados, estão peso político e distribuição regional, alinhamento à agenda de reforma da governança global, rejeição a sanções não autorizadas pelas Nações Unidas e relações amigáveis com todos os membros. O cenário ideal, para o Brasil, seria que apenas os critérios e a categoria de membros fosse decidida na Rússia. Mas a expectativa já mudou para o anúncio de ao menos dez novos países.
O Brics teve perfil alterado no ano passado, com acréscimo de Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. A Argentina também foi convidada, mas recusou, um revés sobretudo para o governo brasileiro. Embora tratados como membros, os sauditas ainda não definiram pela adesão total.
O interesse cada vez maior de países emergentes levou, na ocasião, o ex-chanceler Celso Amorim, assessor especial da Presidência da República, a dizer que o interesse no grupo demonstrava uma nova força no mundo, que não poderia mais ser visto como “ditado pelo G-7″.
Apesar disso, seus principais líderes, entre eles Lula e Putin, tem se esforçado para definir o grupo como uma organização voltada ao Sul Global – costumam alegar que o Brics não é uma forma de “contraponto aos EUA, ao G-20 ou ao G-7″, nem uma organização “dirigida contra ninguém”.
Conselho de Segurança da ONU
Ainda, o Brasil conta com o lobby da Índia e da África do Sul para arrancar uma declaração mais explícita de apoio do Brics ao pleito dos três países por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. A discussão sobre uma linguagem mais clara em geral é travada pela China, mas agora Egito e Etiópia também criaram obstáculos.
A discussão sobre a composição do Conselho de Segurança repete uma cena que ocorreu no ano passado, quando o Brasil também relutava em ceder e buscava conter o ímpeto expansionista no Brics. A delegação negociadora colocou na mesa a mesma contrapartida estratégica – uma declaração mais favorável à sua pretensão na ONU.
O Brasil entende que uma expansão descontrolada pode reduzir a coesão do grupo, diluir seu peso político no grupo e jogar contra seus interesses de manter o não alinhamento, já que fortalece a imagem de bloco sob influência chinesa.
Durante as sessões de debates entre premiês e presidentes, estarão em pauta assuntos como cooperação política e financeira, estímulo ao pagamento em moedas nacionais e a criação de uma futura plataforma de pagamentos própria do Brics, além de uma moeda comum para transações comerciais entre os membros – alternativas à dominância do dólar -, a crise de segurança e a guerra no Oriente Médio, seja em Gaza, no Líbano e o envolvimento do Irã.
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