Lua de mel do setor cultural com governo Lula chega ao fim com críticas em série

As críticas que se avolumaram neste ano ao governo Lula mostram que chegou ao fim a lua de mel entre o mandatário e o setor cultural. A vitória do petista foi recebida como um alento após o ex-presidente Jair Bolsonaro ter reduzido o Ministério da Cultura a uma secretaria e transformado a classe artística em alvo de ataques frequentes.

No entanto, após dois anos de mandato, o clima é de impaciência com a atual gestão. No começo deste mês, profissionais do audiovisual divulgaram uma carta aberta demonstrando preocupação com o que classificam como falta de rumo da política cinematográfica brasileira.

A morosidade na regulamentação do streaming é uma das principais críticas. A medida é considerada importante para fortalecer o mercado nacional diante do avanço das plataformas de streaming, como Max e Netflix.

Um projeto de lei em tramitação no Congresso prevê a contribuição dessas empresas de até 6% da receita anual bruta para o Condecine, a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional. Os recursos desta contribuição compõem o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), criado para desenvolver e financiar a cadeia produtiva do setor. O projeto, porém, está travado na Câmara dos Deputados.

Membro do Conselho Superior do Cinema, Gabriel Pires diz que o governo deveria se empenhar mais para acelerar a regulamentação. “Estou falando do governo como um todo”, diz ele. “Isso não cabe só ao Ministério da Cultura, cabe também à Casa Civil, à Presidência da República e à Secretaria de Relações Institucionais. Mas em 2024 nós perdemos mais um ano.”

Mariza Leão, uma das principais produtoras de cinema do Brasil, faz eco a essa avaliação. “Não existe um empenho político do governo na direção de uma regulamentação do streaming à altura da importância da indústria audiovisual no Brasil”, diz ela, que produziu filmes como “Guerra de Canudos”, “Meu Nome Não é Johnny” e a franquia “De Pernas para o Ar”.

Em nota, o MinC afirma que trabalha ativamente para a regulamentação do streaming, mas que os grandes conglomerados digitais atuam para obstruir o projeto no Congresso.

Leão afirma que outro problema é o grande volume de filmes nacionais que naufraga nas bilheterias por falta de divulgação. “Investir em produção sem investir em estratégia de lançamento é um pouco irresponsável”, diz a Leão. “Não basta ter investimento nos filmes. É preciso ter investimento na formulação de uma política de comunicação das obras.”

Em junho, o governo anunciou com alarde investimentos de R$ 1,6 bilhão no audiovisual. Leão, no entanto, diz que ter metas claras é tão importante quanto ter recursos. “É uma política que comemora volume de investimento desvinculado de resultado.”

A pasta diz que está desenvolvendo o novo plano de diretrizes e metas, documento que irá nortear as políticas do audiovisual dos próximos dez anos.

Além do audiovisual, no mês passado, mudanças na Lei Aldir Blanc provocaram mal-estar entre secretários de cultura pelo Brasil. A medida determina que o governo repasse R$ 15 bilhões a estados e municípios em cinco parcelas anuais de R$ 3 bilhões, até 2027.

Com as alterações, formalizadas por uma medida provisória, o pagamento segue obrigatório, mas as parcelas não precisarão mais ser necessariamente de R$ 3 bilhões por ano.

Gestores locais, no entanto, ficaram insatisfeitos com as mudanças e fizeram uma carta criticando a decisão. “As alterações propostas pela MP e apresentadas de forma intempestiva, desconsiderando a prática de construção compartilhada com os entes executores, comprometem o planejamento local, instauram instabilidade e dificultam o repasse de recursos”, diz o documento.

O governo, por outro lado, afirma que as mudanças foram necessárias em razão da baixa execução dos recursos enviados aos entes federativos. Segundo o Executivo, apenas R$ 208 milhões dos R$ 3 bilhões foram gastos até este momento.

Com as alterações, novas transferências só serão feitas quando os valores depositados anteriormente tiverem sido usados. Com isso, o governo decidiu congelar R$ 1,5 bilhão do repasse previsto para 2024.

O incômodo em relação à política cultural não se restringe à esfera federal. Ao longo do ano, decisões da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) causaram mal-estar entre agentes culturais de São Paulo.

Um dos episódios de maior repercussão aconteceu em março, quando a Secretaria de Cultura decidiu encerrar e substituir o programa Oficinas Culturais, iniciativa que oferecia há mais de três décadas cursos em diferentes linguagens artísticas, entre teatro, literatura e artes plásticas.

O governo afirma, porém, que o programa estava defasado, motivo pelo qual decidiu substituí-lo pelo CultSP Pro – Escolas de Profissionais da Cultura. Lançado no começo de outubro, o projeto deve receber investimentos de R$ 153 milhões até 2029.

A mudança, porém, pegou o setor cultural de surpresa e provocou críticas generalizadas. “Não houve troca, não houve diagnóstico, não apresentaram nenhum tipo de dado, informação ou pesquisa que embasasse a mudança”, diz Zé Renato, artista, produtor cultural e integrante da Frente Única dos Trabalhadores da Cultura.

Outra celeuma aconteceu em torno da TV Cultura —emissora que completou 55 anos com programas suspensos e 116 funcionários demitidos. No começo do ano, o governo congelou R$ 12 milhões do orçamento da Fundação Padre Anchieta, entidade que administra o canal. Em nota, a emissora diz que os cortes são consequência da diminuição de receitas publicitárias, e não do contingenciamento de recursos.

O bloqueio se deu em meio à escalada das tensões entre o governo estadual e a direção da emissora. Como mostrou a Folha em abril, o canal temia uma investida de Tarcísio contra sua independência e pluralismo. Embora seja um canal público, a empresa é gerida por um conselho que tem autonomia em relação ao estado.

Além da TV Cultura, a Fundação Padre Anchieta administra o Solar Crespi Prado. Localizado na avenida Brigadeiro Faria Lima, na zona oeste de São Paulo, o casarão neoclássico sediava há mais de cinco décadas o Museu da Casa Brasileira —espaço dedicado à arquitetura e ao design comandado pelo governo estadual.

Em abril do ano passado, a instituição perdeu a sua sede depois que chegou ao fim um convênio entre a fundação e o governo para abrigá-la no imóvel. À época, a Secretaria de Cultura afirmou que o museu iria para a Casa Modernista, na Vila Mariana.

Em outubro, porém, a pasta informou que voltou atrás em razão das limitações físicas do imóvel. Desde então, o futuro da instituição é cercado por incertezas.

Em nota, a secretaria diz que o acervo foi transferido para uma reserva técnica e que fará uma mostra com os itens da coleção no ano que vem. O novo endereço do museu, no entanto, continua a ser uma incógnita.

Matheus Rocha/Folhapress

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