A carta de renúncia que o papa Francisco escreveu em 2013 para o caso de 'impedimento médico'

Segundo o Código de Direito Canônico, poder do papa só chega ao fim com sua morte ou com renúncia apresentada por livre e espontânea vontade
A internação do papa Francisco com pneumonia e uma condição crítica de saúde vem gerando debates e especulações sobre seu futuro à frente da Igreja Católica e sobre o dia a dia da administração do Vaticano.

O papa foi internado no dia 14 de fevereiro, após sentir dificuldade para respirar. Desde então tem alternando momentos de melhora e piora desde que deu entrada no Hospital Gemelli, em Roma, em um quadro de saúde classificado como "complexo".

O próprio papa já contou que deixou pronta uma carta de renúncia que pode ser utilizada em situação extraordinária. No caso, se houver uma incapacidade dele de conduzir a instituição.

Francisco chegou a sofrer dois episódios de insuficiência respiratória aguda na segunda-feira (3/3) e, desde então, tem se mantido estável, conforme os boletins divulgados diariamente pelo Vaticano.
Os informes têm reiterado que Francisco está consciente e, na medida do possível, exercendo algumas funções de trabalho.

"Neste momento, o papa está tomando as decisões que pode tomar, que dependem dele. Mensagens, nomeações, textos que seriam discursos. Seus assessores trazem o rascunho, ele mexe no texto, aí sai", comenta à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, professor na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e diretor do Lay Centre, também em Roma.

"Quando eles falam nos boletins que o papa 'realizou atividades de trabalho', é um pouco isso: ele estava ali sentado, lendo algumas coisas, aprovando alguns documentos. Ele tem secretários que estão lá e fazem esse trânsito de documentos", contextualiza.

"Quando ele está mal, com crises, respiração mecânica, essas coisas, aí acho que ele não consegue fazer nada disso. Algumas coisas ficam na espera, outras não dependem diretamente dele, porque os dicastérios da Cúria Romana já estão delegados para os cardeais, o papa não precisa participar de tudo", diz Domingues.

"Enquanto ele estiver consciente, o que não depende dele vai para frente, o que depende fica parado até que haja uma normalização da situação."

Oficialmente, o Vaticano não tem se manifestado a respeito do que aconteceria se o quadro de saúde do pontífice piorar a ponto de ele não conseguir agir conscientemente.

Os boletins repetem que o prognóstico é "reservado", embora enfatizem que o religioso, de 88 anos, enfrenta um quadro complexo de saúde.

As experiências de João Paulo 2º e Bento 16

A existência de uma carta de renúncia que pode ser usada em caso de necessidade foi revelada pelo papa em 2022.

"Em 2022, em entrevista ao jornal espanhol ABC, o papa Francisco disse que assinou em 2013 [no primeiro ano de seu pontificado] um documento de renúncia, em caso de uma doença que o impedisse de governar a Igreja", diz o teólogo e padre Dayvid da Silva, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

"Não é o caso, por enquanto, porque ele está consciente e até mesmo assinando decreto, preparando homilias… A Igreja está rezando para que ele se recupere logo, para que possa retomar as suas atividades", comenta.

Uma descrição da entrevista no site de notícias do Vaticano reproduz a resposta dada pelo pontífice aos jornalistas do veículo espanhol na ocasião: "Assinei a renúncia e lhe disse: 'Em caso de impedimento médico ou o que quer que seja, aqui está a minha renúncia'". Ao que os entrevistadores questionam: "O senhor quer que isto seja conhecido?"

"É por isso que estou lhes dizendo", responde Francisco.
O secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin (direita), teria carta de renúncia do papa Francisco
A carta teria sido entregue pelo pontífice ao cardeal italiano Tarcisio Bertone, que era na época o secretário de Estado do Vaticano. Hoje, estaria sob a guarda do cardeal Pietro Parolin, que ocupa o mesmo posto.

"O teor da carta, pelo que se deduz, é que dependeria de um parecer dos médicos de confiança de Francisco, aqueles que tratam dele e, assim, têm uma legitimidade para tanto", contextualizou um vaticanista ouvido pela reportagem, que não quis que seu nome fosse divulgado por não se sentir à vontade especulando sobre a situação de saúde do papa.

Segundo esse vaticanista, isso seria em casos de "chegar ao ponto de, por exemplo, o papa ser intubado, ficar inconsciente, e não mais voltar".

"Poderia ser numa situação dessas ou em caso de ele demorar muito, ficar muito tempo nesse estado", complementa.

Para o observador, contudo, o uso dessa carta não faria sentido se houver um prognóstico médico de que uma eventual intubação não se prolongaria por mais do que uma semana, por exemplo.

O vaticanista lembrou que em diversas situações o próprio papa já se manifestou dizendo que uma renúncia deve ser entendida como exceção na história da cúpula da Igreja. "Para usarem essa carta, teria de ser uma situação prolongada."

Um outra situação possível para o uso dessa carta de 2013, diz, seria se o papa tivesse uma doença como Alzheimer, o que não é o caso agora.

A BBC News Brasil questionou o Vaticano, por meio do Dicastério para a Comunicação, tanto sobre a existência ou não de uma carta de renúncia emergencial quanto sobre eventuais direcionamentos do papa quanto ao uso ou não de determinados procedimentos médicos. O órgão oficial não respondeu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente esta matéria.